Três notas sobre cinema

 

1. QUERO SER JOHN MALKOVICH, DE SPIKE JONZE

 

Quero ser J.M., na verdade se chama Being J.M. “Being” não é bem “quero”. Being é um gerúndio que denota algo em andamento, em curso, como em “stop being a fool” —“pare de ser bobo”—, que implica que você está sendo bobo e precisa deixar de sê-lo. “Sendo J.M.” seria uma tradução mais certeira, embora algo esquisita; ou então, aproveitando as vantagens que nossa língua oferece, “estando” —como quando dizemos de alguém que “não é ministro mas está ministro”—, “Estando J.M”.

O enredo deste filme mais irônico que fantástico, da escola do Woody Allen de Zelig, com um toque de nonsense carroliano, realiza uma velha fantasia filosófica que ilustra a consciência com um homúnculo dentro de nossa cabeça, comandando o corpo qual piloto em miniatura. Jonze nos propõe um passeio turístico pelo ego de um ator famoso mediante a transformação temporária —quinze minutos: os mesmos quinze, de fama, que Warhol vaticinara na vida de todos nos, desconhecidos de sempre— de cada “passageiro” neste homúnculo. Não por acaso o protagonista é um titeriteiro, que depois substituirá a consciência do outro pela sua, e que no começo solta como antecipação um shakespeariano: “a consciência é uma maldição”. Tampouco é por acaso que o outro em questão, a ser visitado no interior, seja uma celebridade. Uma das personagens marca encontro com outra “às sete horas, no J.M.” Note-se que, na mesma lógica, a resposta à pergunta: “Aonde você está?” poderia ser: “Estou no JM”.

Isso tudo para dizer que o “querer” do título é da lavra do tradutor brasileiro, não do autor do filme. O que não impede, claro, servir-se dele com o intuito de tratar do desejo, mas neste sentido qualquer filme, sobre qualquer tema serviria para abordar, de um modo ou de outro, o desejo. Embora a agência de viagens ao ego do ator tenha como mote “Você nunca quis ser outra pessoa? Agora, pode!”, esta comédia trata menos de querer ser J.M. que do que me acontece enquanto estou sendo J.M.

Mas o verdadeiro herói deste filme é Charlie Kaufman, o roteirista, que não vacila em levar o absurdo até as últimas consequências botando o próprio John Malkovich, digamos, “em pessoa”, na fila dos que pagam para entrar em sua cabeça e ver a vida através dos seus olhos. Trata-se da cena mais perspicaz desta comédia —embora talvez não a mais engraçada, já que bordeja o sinistro—, construída como um quadro de Escher ou um canon de Bach: mise en abîme ou looping (não sei qual é o termo português para dizer este efeito de vertigem e de regressão ao infinito dos espelhos enfrentados). Malcovich, então, entra na cabeça de Malcovich, e o que acontece? Vê e ouve a sua própria imagem repetida, como num quadro de Botero, em todos os homens, mulheres, crianças e animais que povoam a realidade. É seu nome, substituindo a linguagem em sua totalidade.

O Eu em decomposição, no momento em que a consciência deixa de coincidir com a representacão que tem de si mesmo e revela, invertida, a sua constituição em camadas, sedimentadas pelas sucessivas identificações, tomadas de fora, dos outros. O mesmo pode se dizer do tema subjacente: a imortalidade platônica por reencarnações sucessivas nos diferentes “veículos” (vessels), de uma mesma consciência que nunca se esquece a si própria. É o velho sonho egóico de durar.

 

2. SOLARIS, DE TARKOVSKIJ

Uma mulher que não para de morrer. Era o que lembrava do filme de Andrei Tarkovskij, feito em 1972 a partir de um romance de Stanislaw Lem. Revi Solaris há pouco tempo para reencontrar o contexto desta insistência; ou talvez para exorcizar a evocação da mulher atormentada que não consegue descansar em paz. É um filme de ficção científica; ou antes, um filme que se serve do gênero para dizer o que tem a dizer.

Solaris é o nome de um lugar. Uma zona no espaço sideral, dentro da qual os desejos dos que nela estão se realizam à sua revelia (demonstrando, como escrevia Baudelaire, que convém ter cuidado com o que se deseja). A sequência evocada era o eterno retorno da suicidada esposa do psicólogo da estação espacial, chamada de volta pela força da culpa do marido e que outras tantas vezes tornava a matar-se, recusando uma ressurreição que não tinha pedido e ele não podia deixar de impor- lhe. A retornada não é porém realmente a mulher dele, viva, mas uma agrupação muito instável de neutrinos que o campo gravitacional de Solaris mantém coesa. Esta explicação é dada à própria pelo cientista de plantão (explicação que não a tranqüiliza nem um pouco, como pode imaginar-se).

O que me impressionou, antes como agora, não é a história de um lugar em que os pesadelos se tornam realidade —podia ser o enredo de qualquer filme americano— mas o tormento do psicólogo astral, sua agonia (devo lembrar que na URSS se esperava de um psicólogo que controlasse as paixões mediante a ciência?); a culpa enfim que experimenta frente a essa infeliz, produto de seu desejo, que não pode morrer mas tampouco viver. (Oposta à Faustine do Bioy1, que não passa de uma imagem sem consciência, esta esposa suicida é uma consciência errante, sem corpo) Qual será a decisão dos cientistas frente a este estado das coisas? Sair de Solaris e voltar a uma realidade mais material(ista), na qual os desejos possam ser esquecidos? Permanecer ali, no lugar mesmo em que eles não nos esquecem? Tarkovskij responde com um travelling final. Mas a resposta não tem a menor importância; o que interessa mesmo é ele ter podido fazer, em pleno regime soviético, a pergunta de Freud.

 

 

3. ADEUS, LÊNIN! DE WOLFGANG BECKER

O musical e a comédia são os gêneros de cinema mais puros que existem, cinematograficamente falando. Digo “puro” no sentido em que a forma se liberta da tirania do realismo, do dever de fingir a realidade, para ocupar-se apenas da coisa cinematográfica, liberando o espectador, ao mesmo tempo, da exigência de Coleridge de suspender a descrença para apreciar a ficção. São filmes irônicos por sua própria natureza, em que a composição mesma declara publicamente a sua essência de artifício.

Deste ponto de vista, a decisão dos exibidores de classificar como comédia Adeus, Lênin! é duplamente pertinente. Primeiro, por ser um filme que cumpre com uma das convenções do gênero: explorar a comicidade inerente aos maus entendidos do amor, aqui, materno e filial. Segundo, por fazer da ilusão mesma o eixo da sua trama.

Com efeito, temos a ação situada em Berlim do leste durante a queda do muro, e um filho empenhado em ocultar da sua militante mãe a realidade do fim do comunismo e a ocidentalização da Alemanha Oriental. Trata-se de um conluio organizado entre amigos, família e vizinhos para mistificar esta velha senhora, cuja vida, nos é dito, fora dedicada a e só faz sentido pela Causa Socialista. O núcleo de nonsense, origem das situações cômicas, é a prescrição médica de evitar absolutamente a esta mulher cardíaca ―sobrevivente de um infarto que a deixara em coma durante os oito meses em que o comunismo era varrido da Alemanha― qualquer emoção violenta. E, claro, que emoção poderia ser mais violenta para uma militante de coração que o fim da Causa pela qual milita?

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Uma observação metodológica, antes de continuar. A psicanálise costuma se deter em obras de arte compostas de tal modo que a realidade do inconsciente se apresenta de modo a obrigar o espectador a implicar-se naquilo que vê ou escuta, sem poder permanecer indiferente. É nesta implicação que reside, para o psicanalista, o interesse da obra. Assim, por exemplo, Freud credita a durabilidade do impacto estético do Rei Édipo, de Sófocles, ao fato de esta tragédia pôr em cena a textura de uma fantasia universal, constituinte do psiquismo em nossa civilização. Quanto mais perto da estrutura esteja, menos livre será o escritor nas escolhas dos avatares dos personagens da trama ficcional. Qualquer escritor sabe disso, que ele é mais conduzido do que condutor de suas personagens. É esta submissão às coerções da estrutura, precisamente, que o psicanalista enxerga como a grandeza de uma obra. Motivo que me leva a centrar meu comentário na lógica que subtende a trama do enredo, em detrimento dos aspectos mais logrados de comicidade e ternura, assim como da fotografia, a direção ou o desempenho dos atores, que deveriam constar de qualquer resenha crítica deste filme encantador.

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Não é tanto por livre arbítrio, portanto, como pela força lógica da trama, que o roteirista decide fazer entrar em coma a personagem depois de um infarto acontecido… quando? No momento de testemunhar a cena do filho lhe sendo tomado pela polícia durante uma manifestação contra o regime que ela serve como cão fiel. Coma que reproduz, um grau acima, a depressão catatônica em que ficara durante longos meses anos antes, quando descobrira que o marido nunca mais voltaria, tendo fugido para o lado ocidental do “Muro da Vergonha”.

E o filho empenha todas as horas do seu dia em conceber e realizar a mistificação destinada a manter a convalescente ignorante do fato de que o mundo, seu mundo, desabou durante a sua “ausência”. Restaura, pois, o quarto da acamada, como estava antes das mudanças e fecha a janela que dá para a rua, abrindo outra, virtual, a televisão, que, mediante falsos jornais de notícias, gravados em vídeo por um amigo, cria a ilusão, primeiro, de que o statu quo continua o mesmo e, depois, inventa um desfecho para o socialismo, não como de fato foi, mas como deveria ter sido, conforme o ideal materno interpretado pelo filho. Reprodução irônica da real politik do stalinismo que, ao invés de adaptar a realidade e reescrever a história conforme os interesses do partido, está motivada pelo bem do outro. O bem do outro interpretado, claro, por aquele que apresenta a realidade de modo a que coincida com uma fantasia.

É difícil não lembrar, neste ponto, do oscarizado filme de Begnini, A vida é bela, cujo enredo e fonte de comicidade (e de polêmica) consistia também em um engano. Desta vez, do filho pelo pai, que pretende salvá- lo do horror da rotina de humilhação, tortura e morte de um campo de extermínio nazista fazendo com que ele acredite que tudo não passa de uma gincana com prêmios. O núcleo cômico sendo precisamente os esforços para que o ludibriado permaneça inocente (cego?) apesar das sucessivas fraturas da montagem ficcional através das quais irrompe a insuportável realidade. Insuportável, em tese, para o mistificado (o filho, no caso de Begnini; a mãe, no de Becker), mas que o filme revela como uma paixão de ignorar menos do enganado que do enganador.

O enredo de Adeus mostra isso quando nos surpreende com a confissão da mãe de que ela mesma tinha mentido o tempo todo no concernente ao suposto abandono do lar do pai deles atrás de um rabo de saia. Não teria havido tal. O marido da protagonista fora obrigado a fugir para o outro lado da “Cortina de Ferro” para não cair nas mãos da Stasi e ela, que devia seguí-lo, por medo de ser surpreendida e terminar os dias em algum campo de concentração, separada dos seus, opta por tocar a vida contando para si mesma e para os filhos a estória da esposa traída.

A aplicada militante passara a vida ocultando(se) a própia covardia: “Quando meu pai foi embora”, nos diz o filho, “a minha mãe casou definitivamente com o Partido.” E não é um detalhe menor as cartas escondidas e jamais abertas, que o homem, abandonado do lado da “liberdade”, escrevera para a sua família, que desistira de juntar-se a ele sem uma única palavra.

Há dois pontos em que o autor chega demasiado perto do real da estrutura e não consegue evitar ser arrastado pela ficção, talvez à sua revelia. Um deles é o infarto e conseqüênte estado de coma da mãe, no momento em que vê o filho ―pelo qual renunciara ao marido― ser tirado dela pela Polícia Política. Outro, o momento em que, ainda sem saber, supostamente, que está sendo ludibriada, confessa a verdade sobre o abandono do pai. Revela-se nesse momento, senão para a personagem ao menos para o público, que a mistificação toda era um exemplo da lógica pela qual o emissor recebe do receptor a sua própria mensagem de modo invertido. A mentira amorosa filial reproduz em espelho a mentira amorosa materna, destinada menos a enganá-lo do que a ocultar a si própria a sua opção de abandonar seu homem para ficar com seu filho.


Ricardo Goldenberg, 2012


1 A. Bioy Casares, La Invensión de Morel. Notadamente, a opção do herói apaixonado por esta fausta já falecida é transformar-se, ele mesmo, numa imagem, mesmo ao preço da sua própria morte, para “estar com ela” ao menos aos olhos de quem vier ver.